segunda-feira, 21 de junho de 2010

Não é outra dimensão, é a Dimensão Nerd

Rafael Roncato e Lucas Hackradt
O ar está diferente na cidade de São Paulo, talvez mais frio que o normal para esse sábado, dia 15 de maio. Algo está fora do comum e não é exatamente a temperatura. Pode ser o clima, as pessoas, os lugares, o movimento - tudo saiu do habitual. Tudo bem que o normal de São Paulo é a mais pura agitação, mas hoje vemos algo único, um movimento mais de ida do que volta. A população vai de encontro ao centro da cidade para uma das maiores agitações do ano: a Virada Cultural. Essa festança só pode perder para as duas maiores folias do ano no Brasil, Carnaval e Parada Gay.

Não são nem quatro horas da tarde, e já se nota na Avenida Paulista uma crescente migração, sorridente e brincalhona, de todo tipo de gente para a festa do dia, que infelizmente não pode ser infinita. Para quais apresentações e locais aquelas pessoas estariam seguindo, aparentemente sem pressa alguma? Não importa, a comemoração seria boa de qualquer maneira, independentemente do lugar ou show; a alegria parece estar em ver e fazer de tudo um pouco, acompanhar o movimento do Sol, poente ou nascente, em meio a muita cultura. E melhor: é tudo diversão gratuita.

“Vambora para festa?”, pergunta Ricardo Cruz, já se direcionando para porta do apartamento. Mesmo ainda relativamente cedo, tínhamos que chegar antes na Praça João Mendes para os preparativos e instruções da Dimensão Nerd, pela primeira vez uma área completamente dedicada a tudo que se relaciona com o universo nerd, que aconteceria na Praça Roosevelt. Ricardo não queria sair antes para disputar um bom lugar, ele tinha que sair logo porque fazia parte de um dos eventos da Dimensão Nerd, sua voz era requisitada para guiar, em cima de um trio elétrico, um desfile, ao melhor estilo carnavalesco, com pessoas vestidas de seus desenhos animados favoritos.
ATÉ DE "OS IRMÃOS MARIO" O PESSOAL FOI VESTIDO À DIMENSÃO NERD
Seguimos para a estação Trianon-Masp. Ao entrar no trem, nota-se que algumas das pessoas ali dentro também seguirão para o mesmo destino: elas são facilmente reconhecidas por meio de tiaras ou gorros com orelhas de gato, ou por assessórios não muito usuais, como saias de colegiais, sobretudos negros em conjunto aos óculos escuros no melhor estio Matrix. Por um segundo, com os novos trens e aquelas pessoas, parece que fomos transportados para alguma estação no Japão, cercado pelas mais curiosas figuras das ruas de Tóquio; esse devaneio é quebrado ao chegar ao Paraíso (a estação de metrô). Fazemos uma rápida baldeação em conjunto aos nossos amigos de interesses comuns, agora conversando mais alegremente, tão próximos de sua private Tóquio: o bairro da Liberdade.

Alcançada a Liberdade, encontramos ainda na estação outros cantores que também fazem parte do trio elétrico nipônico, mesmo que apenas um deles possuindo traços orientais. Realmente, parece destoar a música japonesa ser cantada por pessoas que aparentemente não possuem ligação alguma com a terra do sol nascente. Na verdade, não é nenhum pouco esquisito para quem convive nesse meio; tão normal que ao redor vemos mais gente ligada a essa cultura através de laços mais afetivos que, de fato, sanguíneos. Enquanto japoneses e não japoneses continuam a se encontrar, fantasiados ou apenas com alguma referência de seu anime ou banda favorita, decidimos que é hora de continuar a jornada. Para chegar ao destino é fácil: segue-se os nerds.

Após acompanhar um pequeno grupo de nerds sem sermos notados, descobrimos, além de seus curiosos hábitos, que o ponto de encontro para o bota-fora do desfile estava próximo, bem ao lado da catedral da Sé, onde havia uma imensa pista de música eletrônica para os mais animados. Mesmo com o pequeno número de pessoas na praça, apenas aguardando maior número e poderem marchar – ou desfilar – pelo centro da cidade, cerca de quatro policiais já estavam de olho, comentando e rindo de algumas fantasias mais cômicas. A gargalhada é quase unânime quando chega Tomelirolla, “o gordinho tarado” do site Mundo Canibal, com sua cabeleira ruiva, cara coberta por sardas, óculos fundo de garrafa, camiseta justinha e o calção com uma protuberância nada simpática para quem fosse pego de surpresa.

Passando pela estupefação, notam-se outros personagens realmente conhecidos, como o pirata Jack Sparrow, a Harlequim, uma das muitas arquiinimigas do Batman, alguns personagens do game Street


GAROTOS FANTASIADOS SE DIVERTEM NA PARADA NERD.

Fighter, um mini Naruto e pelo menos três personagens de Dragon Ball Z. Alguns ciclistas que passavam rapidamente pela praça paravam para observar e se divertirem junto com os fantasiados, que encarnam até os trejeitos dos personagens; um descuido e você pode esbarrar no pirata bêbado ou ser surpreendido pelo volume do gordinho ruivo safado.

Enquanto os personagens conversavam, os cantores e o motorista se aqueciam cada um de sua maneira e com seu instrumento da noite. Motores ligados, caixas testadas, goles d’água tomados, lista das músicas decididas, agora é só esperar mais participantes. Como em qualquer festa, ou comício, som ligado é imã de pessoas; à medida que as primeiras notas e os primeiros versos em japonês são tocados, os personagens e os participantes mais tímidos para fantasias agrupam-se
PARECE O JACK SPARROW. MAS NÃO É.

em volta ao carro de som e começam a cantar. Chegou a hora.

Às 17h30, uma fila muito parecida a de marchas em comemoração ao dia da independência é formada, três cantores ficam na parte superior do trio elétrico, os outros três seguem ao lado esperando a vez de trocar e, assim, cantar as músicas escolhidas. O carro segue pelas ruas do centro, passando entre lojas ainda abertas; vemos lojistas boquiabertos e transeuntes embasbacados com a cantoria nipônica. A maioria acaba entrando no clima da festa nerd arriscando alguns passos de dança, balançando as mãos e oferecendo calorosos tchauzinhos aos participantes. Quem poderia esperar por isso?
Na primeira parada para troca de cantores, mais pessoas aproximam-se para tentar entender um pouco daquele carnaval fora de época. Vendedores ambulantes, moradores de rua e outros pedestres da Virada são atraídos pela animação dos nerds, passando de um começo tímido, um pouco contido pelo frio, para hinos japoneses televisivos cantados de maneira uníssona. Mesmo com tanta diferença entre todos que participavam, todos dividiam algo em comum nesta noite: a alegria.

Logo após algumas músicas de Ricardo e mais uma parada, decidimos ir ao banheiro mais próximo. Ainda bem que tem apenas uma pessoa na frente. Ainda bem? Nunca vi alguém demorar tanto para fazer o que deve ser feito; com a demora começamos a ficar preocupados com a passeata: “será que já saíram? Quanto tempo mais vai demorar esse camarada? Ele tem algum problema?” Pronto, agora o banheiro é usado às pressas. Depois de terminar, o trio elétrico não está mais onde deveria ter ficado. Numa mistura de desespero e nenhuma visibilidade do carro, corremos para o lado errado – 50% de chance de errar, claro que a Lady Murphy, aquela senhora sapeca, iria nos sacanear.
“O senhor viu um bando de gente fantasiada cantando músicas em japonês?”, perguntamos ao senhor simpático que responde extremamente contente: “Claro, eles foram por ali!” Finalmente alcançamos o trio elétrico que ainda estava em movimento, mesmo que quase parando. Mais alguma paradas e trocas de cantores foram feitas, chegou um momento que a polícia fez uma rápida escolta até próximo a Praça Roosevelt, sertificando-se que nenhum nerd fosse atropelado.
Ainda em cima do carro de som Ricardo anuncia: “É a primeira vez que algo parecido com isso acontece! Agora, vamos até a parte superior da praça para o show da banda J-Squad.” O som é desligado, os nerds se multiplicam e seguem para o palco com os demais que já estavam pela praça. A vontade em continuar a festa com mais música japonesa, agora dirigido por uma banda completa, é tamanha que as barracas com vendas de bugigangas nerds passam despercebidas, menos para meia dúzia de consumistas.

Ao subirmos uma rampa circular que leva ao ponto mais alto da praça, vemos que um palco fora do comum: uma concha acústica que não é bem uma concha, mas sim uma armação metálica vazada imitando uma concha, só que parecendo uma teia armada formando uma semi-oca. Som, iluminação e até fumaça já haviam sido testadas, agora era só aproveitar mais uma hora com as melhores músicas do universo nerd japonês. Nesse exato momento os fãs já ocuparam seus lugares em volta do palco, apenas aguardando a banda. Misturado com o resto do público e destoando, vemos jovens arriscando manobras de skate, famílias curiosas esperando seja lá o que for e, claro, nerds sentados por todos os cantos – esses provavelmente não tiveram o pique para acompanhar o desfile.

O PALCO NA PRAÇA ROOSEVELT, ONDE VÁRIOS SHOWS GEEKS FORAM REALIZADOS.

“Quem nunca ouviu música japonesa aqui?” pergunta um dos cantores da J-Squad assim que a banda sobe ao palco. Timidamente poucas pessoas levantam a mão e o cantor completa: “Então vamos nos divertir agora!” Nesse momento a banda começa a tocar riffs de guitarra que os nerds mais antenados descobrem de imediato qual música é e vibram freneticamente. Deve ser uma música e tanto, ninguém reage dessa forma por nada. Os mais próximos ao palco pulam, gritam e cantam juntamente com a banda, que agora é só sorrisos e animação com o feedback do público.
O som deve reverberar de tal maneira que ao olhar para pontos altos, vejo os moradores tentarem entender o que está acontecendo pelas janelas dos prédios; alguns entram no clima da festa e dobram os joelhos repetidamente como uma forma cafona de dança. O clima de festa é geral, menos para uma mulher sentada no canto esquerdo do palco, bem desanimada e muito bem agasalhada, acompanhada de quatro garotas e dois meninos, cada uma aparentemente de uma idade diferente; não há sinal do pai. O menino mais velho sai para a multidão e desaparece. Cinco minutos depois o garoto passa próximo com uma pulseira que mostra para a mãe. Ela pega, olha e já coloca estranhamente rápido na mochila. Depois de um tempo aparecem dois policiais para conversar com os sete. Eles pedem educadamente o RG, conversam um pouco e querem ver o que ela leva na mochila. Mas os policiais olham, um dos garotos também atrapalha um pouco, e não encontram nada; eles liberam a família, que sai logo em seguida. O policial ainda desconfiado pega uma lanterna e procura algo no chão. Nada.

De repente alguém ao meu lado grita: “Olha ali!”. Inacreditável, é uma invasão estelar: são os personagens de Guerra nas Estrelas misturando-se com as pessoas do universo japonês; em fila indiana eles penetram entre o público do show, atrapalhando a visualização do show. A Marcha Imperial nos vem e toca sem parar – um princípio de nerdice por osmose. A atenção é totalmente desviada, agora a nova atração: são Darth Vaders, Patrols e Jedis armados das mais variadas cores de sabres. Haveria uma disputa por atenção? Guerra nas Estrelas versus banda especializada em tema de desenhos? Nada disso acontece, os guerreiros intergaláticos também querem assistir ao show já que sua passeata chegou adiantada ao destino final que não era em busca de uma galáxia tão distante assim.

“Esse cara que vai contar agora está na banda Jam Project, o maior grupo de animesongs do Japão! Vamos aplaudir Ricardo Cruz!” Em meio aos aplausos e gritos, o cantor vai para frente do palco e anima ainda mais o pessoal.
PERCEBAM O PEQUENO LUKE SKYWALKER DE VERMELHO AO LADO DE SEU PAI
Ele anuncia a música Pegasus Fantasy, abertura de Os Cavaleiros do Zodíaco e uma das mais conhecidas canções dos desenhos japoneses de todos os tempos. Ricardo e outro cantor dividem as vozes. A primeira voz é em japonês e fica por conta do cantor do Jam Project, após alguns versos e o refrão, entra a voz em português. Não importa o idioma, o som é contagiante. Até as duas últimas músicas as pessoas não cansam de pular, algumas até fazer manobras em cima de muros ou algum corrimão perto do palco.

Logo depois da última música, o público se dirige para a parte de baixo da praça onde já se pode ouvir uma gritaria. Com Ricardo, ainda elétrico devido à energia do show, vamos de encontro ao burbúrio. Vemos uma roda e barulho de briga no meio. Aproximamos e, ao olhar entre cabeças, descobrimo que na verdade é uma disputa de sabres de luz, vemos Darth Vader contra Darth Vader, Jedi contra Jedi; só na Dimensão Nerd para ver algo do tipo. Um garoto vestido de demônio – assim imagina-se - passa e pergunta algo que não dá para decifrar. Ele sai parecendo agradecer e vai embora esbarrando suas longas asas nos espectadores da luta. Segue seu caminho e nós vamos seguir o nosso, a festa continua. É bom ter acertado a direção de seja lá o que se tenha indicado. Nunca é benéfico enganar o demônio.
*fotos: Leandro Moraes / UOL

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